quinta-feira, 7 de outubro de 2010

EU SEI, MAS NÃO DEVIA

Marina Colasanti


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.



Marina Colasanti nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.

O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.





segunda-feira, 4 de outubro de 2010

UM TEXTO PARA MUITAS LEITURAS


“A leitura do mundo precede a leitura da palavra”
 (Paulo Freire)

Acredito que quando Paulo Freire fez esta consideração, possivelmente, quis instigar que cada leitor pudesse fazer uma introspecção da sua própria história sob um traçado mais profundo e provocador.

Pensar no que está posto é muito fácil, pois já está ali, escrito e não é necessário fazer muito esforço, entretanto quando a proposta é fazer uma leitura que seja conduzida para um caminho mais analítico, inspirando o entendimento de confronto que está nas entrelinhas, pode ser dolorido... Acredite!

Muitas pessoas têm medo de entender o que está além das palavras, pois isso induz mudança, requer reflexão e acarreta a empregabilidade de um pensamento crítico. Mas “o quê” ou “em quê” isso pode mudar o rumo da minha história ou do meu caminho? É simples... Basta pensar no que acontece enquanto me esquivo no meu cantinho e me recuso a admitir que faço parte de algo muito maior do que o “fabuloso” mundo daquilo que vejo todos os dias. É, crescer é mais perigoso do que parece!

A leitura de tudo que ocorre e das coisas com as quais convivo, exige algo que ultrapassa o simples “juntar” de palavras, fatos ou ideias, é necessário ser crítico. E isso não induz pensar que será fácil expor o que sinto ou penso de maneira a discordar do mundo simplesmente, mas da forma como devo rever meus conceitos e compreender que muito do que é inevitável mudar, deverá partir inicialmente de dentro de mim. Para quem pensa que falo de utopias, faço um desafio: pare de acreditar em tudo que lê, pelo simples fato de ter sido escrito por alguém de grande prestígio literário ou jornalístico e a partir daí, construa seu próprio texto, sua própria história sem perder a visão da sensibilidade e do respeito ao outro.

Ter entendimento daquilo que gira ao nosso redor, requer que saibamos usar nossos sentidos, portanto saboreie cada palavra e faça a degustação sem pressa, a fim de que a digestão seja perfeita, suave e sem surpresas; aprenda a escutar, pois o silêncio ensina muito mais que a auditiva de grandes discursos; quem escuta bem, torna-se um exímio observador e pondera em cada movimento a resposta para os mais abruptos questionamentos; “pegar no ar” exprime ser perspicaz e aprender a ser mais rápido que as adversidades; por fim, sinta o cheiro daquilo que realmente está perto de você, não seja complacente com a situação, respire as oportunidades e trace suas próprias metas.

Parece complicado, não é?! Mas, quem disse que a nossa estada por aqui seria fácil? Então, aprenda a ter vontade de que o mundo seja melhor, fazendo uma breve co-relação com o célebre poema de João Cabral de Melo Neto “um galo sozinho não tece a manhã: ele sempre precisará de outros galos” e faça disso o início de uma história surpreendente, menos egoísta e capaz de descrever com ousadia um novo traçado chamado: ESPERANÇA.

Pense: “Oportunidade é diferente de oportunismo” e quem sabe não é a partir desta análise que será possível compreender o real sentido da palavra reflexão.

(Texto de Odelízia Oliveira)